setembro 04, 2004

As várias nuances da solidão (parte 1)


HOLA!

Segundo consta no Aurélio, solidão é do latim solitudine, através de solidoe,s. f., estado de quem está só; lugar ermo, solitário.

Todos nós saboreamos sadicamente essa dor lancinante. A humanidade adora a auto-comiseração, não aproveita o momento de introspecção, o fato de estarem sós, conhecendo melhor a si mesmos e torna o momento uma tortura interminável. Como todos já sentimos ou sentiremos solidão em alguma época nas nossas vidas, resolvi descrevê-la através das músicas, das artes plásticas, da literatura com seus poemas, prosas e frases e através do cinema. Já que o tema é bastante amplo, vou escrevendo paulatinamente.

Como sou notadamente prolixa, vou colocar 5 exemplos da solidão intrínseca na artes e dissecá-los.


A SOLIDÃO NO CINEMA


01- O anjo exterminador



Obra-prima do mestre Buñuel, maior exemplo do cinema surrealista. O filme conta a história de um grupo de pessoas que se reunem em uma mansão, e ficam presos dentro da sala sem saberem como sair,sendo que a porta para a rua está apenas alguns passos adiante.

É uma crítica voraz à burguesia e seus falsos moralismos, serve como um laborátorio humano, onde somos espectadores das farsas, dos falsos sentimentos, das máscaras, da obscuridade de suas verdadeiras personas. As máscaras e convenções sociais começam a ruir, revelando a falsidade e podridão de cada pessoa.

Mas Anjo Exterminador também é um filme sobre a solidão. Seus personagens não conseguem conviver entre si por um longo período e não conseguem ficar sozinhos. São seres divididos, desunificados, verdadeiros cacos humanos que se misturam para tentar suportar a própria existência.

O Anjo Exterminador é um daqueles filmes para toda a vida e citando Buñuel "Vivo muito bem com minhas contradições".


02- Encontros e desencontros



Este filme é um tratado sobre a solidão, sobre a imcompreensão dos sentimentos... Tóquio está mais perto do que pensamos, pode não ter todo aquele barulho infernal dos games, aquela luminosidade absurda, mas todos têm a mesma carinha, são apenas almas perabulando ao nosso redor ou sou eu a alma penada?

Belíssimo filme sobre a incomunicabilidade nos relacionamentos. Sobre isolamento. Sobre a solidão e um amor puro que não pode ser maculado pelo sexo. Aspectos tão comuns na vida de qualquer mortal mas que no filme, ironicamente, só serão decodificados e compreendidos por uns poucos (ignorem opiniões como 'lento', 'fala sobre o nada', 'não chega a lugar nenhum'). Obra prima da sutileza, um retrato da insatisfação com a própria realidade, mesmo quando essa realidade é abundante em elementos que servem de forma plena a qualquer pessoa. Retrata o vazio existencial, o 'plus' que faz a vida de todos nós ter sentido. Felizmente o filme não fala qual é o 'plus'. Isso varia de expectador pra expectador.

Quem nunca se sentiu sozinho e inaudível de forma tão profunda, mesmo cercado de diversas coisas que tornaria qualquer pessoa feliz (o que é o caso dos personagens do filme), certamente não vai se identificar com o filme MESMO!!!!

Menção honrosa para o beijo mais sincero, puro e delicioso dos últimos anos na história cinematográfica...


03- As horas



Em pleno Carnaval, enquanto deveria estar pulando feliz da vida atrás de um trio-elétrico, consegui diferir um golpe dentro da minha própria ferida. Apesar de estar lá, estava secretamente camuflada, mas foi iniciar a projeção do filme e me ver através de uma mulher que deixou escapar o amor de sua vida ou que esconde sua vulnerabilidade através de máscaras , ou vegeta em um cotidiano tipicamente comum, frustrante, seguindo com apatia uma vida que não é a sua, acomodada, perdida ou sufocada com a monotonia diária. O tempo não passa para os que sofrem, arrasta-se, pesando e prolongando a dor.

O filme não fala exatamente da solidão, mas esta tem uma linha bastante tênue com a depressão e citando uma frase que Virginia Woolf disse para seu marido durante o filme "Eu luto sozinha contra a escuridão, na mais profunda escuridão, e só eu sei o que isso significa. Só eu posso entender minha condição. Você vive sob a ameaça de minha extinção. Eu também vivo sob esta ameaça". Estamos de peito aberto e o vento ecoa no vácuo das nossas vidas, mas até quando? Até gritarmos por socorro? Ou apagarmos os olhos para as rosas e espinhos das nossas vidas?


04- Brilho eterno de uma mente sem lembranças



Ontem revi o filme e reitero todas as minhas palavras sobre ele. Algo que notei mais precisamente foi a insegurança da Clementine. É a chave de tudo. É o ponto de partida para sua impulsividade, sua imaturidade, seu descontrole emocional. Em certo momento, Joel chega para ela e fala "Comunicar não é falar muito". A incompreensão nos leva a sentirmos só, numa sensação muito mais gélida que aquele lago onde deitam.

Outro fato que também visualizei melhor é que na tentativa frustrada de não erradicar de si as memórias relacionadas a Clementine, Joel encontra a si mesmo e se descobre.

Como diz Vinícius de Morais no seu tão conhecido SONETO DE FIDELIDADE, "Quem sabe a solidão, fim de quem ama..." e o filme destrincha a solidão pelo término do relacionamento através do olhar tristonho de ambos, do sofrimento inexplicado de uma mente sem lembranças, da vontade absurda de berrar e chorar diante do buraco negro que é suas vidas. E chego a uma conclusão, podem apagar nossas memórias, mas nossos sentimentos nunca, porque de uma forma ou de outra, vamos trilhar o mesmo caminho de outrora. Quando a Clementine fala para o Joel que ele queria ficar com ela apenas como uma redenção para as suas falhas, procurando a paz nela, uma pergunta memorável é feita por Clementine: "Te saquei, né?" Daí ele responde: "Você sacou a humanidade inteira". Esta é a síntese e o espírito do filme.

Ao ver Brilho Eterno novamente, veio no meu pensamento uma música do Radiohead, Black Star, e ela se encaixa perfeitamente nessa pequena obra-prima.

"Eu chego em casa do trabalho e você ainda está de camisola
O que é que eu posso fazer?
Conheço todas as coisas na sua cabeça
E o que elas fazem com você
O que vai acontecer conosco?
O que vamos fazer?

Culpe a estrela negra
Culpe o céu que cai
Culpe o satélite que me guia para casa

As palavras perturbadas de uma mente perturbada tento compreender
O que está te consumindo
Tento me manter acordado mas fazem 58 horas desde a última vez que dormi com você
O que vai acontecer conosco?
Eu simplesmente não sei mais

Culpe a estrela negra
Culpe o céu que cai
Culpe o satélite que me guia para casa

Tomo o trem e fico só de pé,
Agora que eu não penso em você
Tenho que me esforçar para não desmaiar quando vejo uma face como a sua
Aonde eu vou chegar?
Eu vou me fundir"



05-A ostra e o vento



Obra-prima injustiçada do cinema nacional... "História envolta em lirismo e mistério, onde o mar e o vento são os principais personagens. Velhos marinheiros, tragédias, amores e naufrágios vão e voltam como ondas. A solidão humana em contraste com a imperturbável natureza que a cerca..."

Somos apresentados à jovem Marcela (Leandra Leal), seu pai protetor, o faroleiro José (Lima Duarte) e o velho Daniel (Fernando Torres). Em meio a esta solidão, e a este clima, Marcela torna-se adolescente, descobre seu corpo, o sexo, e sente necessidade de amar. Sozinha, incomunicável com jovens de sua idade, de imaginação fértil e desenvolvida pelas lições de Daniel, acaba criando Saulo. Este ser fictício vai adquirindo tal realidade que domina a moça imaginosa, os dois velhos e a própria ilha.

Tal é a intensidade de necessidade de afeto sentida por Marcela, e tal é a realidade que empresta a Saulo, que é capaz de criar (mentalmente) relações sexuais com ele, de senti-lo em si. Criando Saulo, Marcela cria também na ilha um clima psicológico extremamente intenso, irreal, que acaba dominando o pai, Daniel e a própria ilha. Imperdível!!!


Dignos de nota: Central do Brasil, Embriagado de amor, O agente da estação, Edward, mãos de tesoura, Marty, Minha vida sem mim, Requiem para um sonho, Taxi Driver, Perdidos na noite, Náufrago, Fale com ela, A.I., O diário de Bridget Jones (mesmo com enfoque claramente divertido).

Poema do dia:

"Deus costuma usar a solidão para nos ensinar sobre a convivência.
Às vezes, usa a raiva, para que possamos compreender o infinito valor da paz.
Outras vezes usa o tédio, quando quer nos mostrar a importância da aventura e do abandono.
Deus costuma usar o silêncio para nos ensinar sobre a responsabilidade do que dizemos.
Às vezes usa o cansaço, para que possamos compreender o valor do despertar.
Outras vezes usa doença, quando quer nos mostrar a importância da saúde.
Deus costuma usar o fogo para nos ensinar sobre água.
Às vezes, usa a terra, para que possamos compreender o valor do ar.
Outras vezes usa a morte, quando quer nos mostrar a importância da vida".


Fernando Pessoa


HASTA!