agosto 20, 2006

"Lost in translation"

Carlos

Ao fixar os olhos naquele quadro de um tal Edward Hopper, reverenciado por todos e também chamado de “o pintor da solidão”, logo pensara: “O que faço aqui vendo quadros sem graça no meu único dia de folga?”


Rebeca

O que faço aqui nesse vernissage repleto de hipócritas pseudo-intelectuais e viciados como eu? Viemos agradecer a Edward Hopper a dar falsos motivos que nos ludibriam.

E o que faz aquele patético suburbano ali? Nem sabe que arte é para se ver e não para cheirar!


Carlos

Mais da metade do salário nessa bobagem existencial. O que deu em mim? Lembro ter visto o cartaz sobre essa amostra de quadros tão famosos. Repentinamente deu uma vontade insensata de fazer algo que realmente não pertencia ao meu cotidiano.


Rebeca

Como gasto meu dinheiro para trazer cultura para um país de anencéfalos? País onde a cultura está veiculada a um “plim plim” e olhem que há atrocidades piores. Não têm um background para assimilar a arte.




Carlos

Esses quadros lembram um livro que recebi de um amigo homossexual. Péssimo é ser caridoso com a qualidade da obra. Para que existem os críticos? São sempre alheios aos nossos gostos e admiram obras ditas abstratas, eufemismo para a falta de noção e incoerência.

Qual era mesmo o nome do livro? Hummm... Madame Bovary. Era insosso, apático igual a sua personagem principal.


Rebeca

O nervosismo era explícito. Já deveriam ter percebido que alguns maços de cigarro já haviam sido gastos. Em um certo momento, olhara para aquelas marcas indeléveis, uma súbita sensação de inquietude, inadequação e incompreensão... Madame Bovary.


Carlos

Já era tarde. Meus pensamentos contradizem a verdadeira razão de estar aqui. Amanhã cedo a mediocridade me espera. Algo tirei do dia de hoje: a mediocridade não só me pertence.


Rebeca

Até que não foi um fracasso de público. Mas queria perguntar a cada um que aqui estava se conseguira captar a mensagem deixada por Hopper. Indubitavelmente entraram conforme saíram. Qual o prazer então? Circular? Preciso novamente me esconder...

Carlos

Os velhos companheiros de sempre. O teto e o chão. Parecem tocar uma mesma canção fria e grave, mas que recriam um ambiente tão familiar.


Rebeca

As batidas desenfreadas do DJ contrapõem-se com a bradicardia fúnebre dos meus pensamentos. Nem estimulantes exógenos me libertam de mim mesma. Sou teto e chão.


Carlos

O sol nasce, todos ainda dormem. Mais uma noite em claro em busca de respostas, numa procura incessante e ineficaz de mim mesmo.

O que é mais estimulante? Bater o mesmo ponto todos os dias ou o meu próprio trabalho? O eterno empate técnico!


Rebeca

O sol nasce, todos ainda dormem. Mais uma noite em claro escondendo-me de mim mesma. O que é mais estimulante? A noite iluminada pelas drogas ou o sol que escurece minha pseudo alegria?

Tentativas frustras de dormir. Uma vontade súbita de ir a um lugar que tanto freqüentara e venerava na infância.



Carlos

Mais um dia de trabalho. Vai e volta... Volta e vai... Hoje será melhor, muito melhor...


Rebeca

Que direção tomar? Olhando por um aspecto que antes nunca notara, percebi que a mediocridade não só me pertence, espalha-se como uma moléstia grave.

Prestem atenção nos motoristas de metrô. Nem conseguimos visualizar seus rostos. São espectros de nós mesmos. Vão e vêm... Vêm e vão... O caminho sabem de cor, isolados, sem emoção. Um eterno inverno...


Carlos

Tentei lembrar como cheguei até aqui. Tudo tão distante, tão vago... Subitamente Hopper adentrou meus pensamentos. Uma claridade súbita surgiu. Eu sou mais um personagem do grande pintor da solidão.


Rebeca

Tentei lembrar como cheguei até esse poço de desilusões e devaneios. Pouquíssimas pessoas circulavam pela estação, os vagões estavam iluminados e vazios, numa dualidade tão inerente a mim. Repentinamente, deu uma vontade insensata de conhecer aquele que nos guiava.



Carlos

Alguém batia incessante e violentamente a porta. Sempre a primeira viagem é quase vazia, exceto pelos companheiros alcoólatras inofensivos. Já estava tão perto...


Rebeca

Uma das paradas mais bonitas por mim tão esquecida. Como posso trabalhar lá quase todos os dias e nunca vir por aqui? Maldito dinheiro! Quando era criança, meus olhos marejavam de lágrimas alegres ao ver a entrada do museu por aquela estação. Sonhos adormecidos... Queria ser uma grande artista. Sou uma marchand.


Carlos

Alheio às súplicas para que abrisse a porta, refletia sobre minha vida. Nada poderia estragar o clímax de uma vida inútil.

Queria ser cineasta. Entrei na faculdade, empolguei-me, mas no meu primeiro curta fui tão massacrado por colegas e mestres que nem mais assistia aos filmes, muito menos diploma obtive. A única ligação com cinema que tinha era o travelling do meu cotidiano, mas é irrefutável que não daria um bom plano.


Rebeca

O que faria se ele abrisse a porta? Quem seria ele? Ou será que há ela? Como seria sua vida? Uma vontade de me esconder, mas vim sem munições. Seria bom viver como aquele futuro que Huxley imaginou em Admirável Mundo Novo?


Carlos

Sou um ípsilon. Um estorvo, escória, esterco... Nem soma tenho direito!

Luísa, Ana, Gisele, Fernanda... Apenas vultos que caminharam pela minha estrada. Paralelas, nunca próximas.


Rebeca

Cocaína, canabis, ecstasy, LSD... Namorados fixos, fiéis. O resto são rostos que vêm e vão, mas que nunca marcaram território.


Carlos

O que ela faz aqui? Lembro-me de como ela me fitava lá no museu. Olhar zombador e crítico. Mais uma na imensidão de olhares.


Rebeca

Ele? O mesmo olhar triste e vago. Somos um só!



No olhar, procuraram respostas. Sentiam uma inesperada comunicação entre eles. Mundos distantes, universos tão próximos. As lágrimas escorriam. Um afago de compreeensão. De repente, um interrompe o silêncio.



Carlos

- Saia!

Rebeca

- Por quê?

Carlos

- Edward Hopper.

Rebeca

- Sim, claro! Posso ficar?

Carlos

- Por quê?

Rebeca

- Hopper!


O início do fim dos dias. Abençoados os que são agraciados pela felicidade, já que não percorrem as trevas da solidão infinita, a incompreensão alheia e de si mesmo, a embriaguez da desilusão, o inverno de sentimentos. E para aqueles como nós: “descansem em paz!”.